A Lenda de Marim
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Quinta de Marim |
O Abismo Encantado
A Quinta de Marim, propriedade importante, pertencente ao Ex.mo Sr. João Lúcio Pereira, de Olhão, é hoje regada por abundante veio de água que a fertiliza em toda a sua extensão. Em tempos remotos os terrenos desta quinta eram de uma esterilidade pasmosa pois que ali se não encontrava a mais pequena fonte.
Em
tempo dos árabes nesta província, era dono daquela propriedade um
rico mouro, que morava em um prédio acastelado quase no centro.
Tinha ele uma filha formosíssima, o encanto do pai, e o enlevo dos
jovens ricos de toda a província.
Em muitas ocasiões tentaram
os mancebos mais ricos e poderosos conseguir do velho mouro a mão da
filha, mas ele, teimoso e cioso, inventava todos os pretextos para se
negar a quaisquer propostas desta natureza. Entre outros havia um
mouro, jovem e rico de prendas, que não desistia do seu intento.
Além de ser bastante rico, era dotado de excelentes qualidades
morais e artísticas: professava em extremo a poesia e era músico
habilíssimo. É sabido que nesse tempo Silves era uma das mais
importantes sedes, onde se distinguiam nas suas escolas os primeiros
poetas sarracenos. Condé, na sua História, menciona muitos poetas e
músicos que floresceram, naqueles tempos, entre os mouros. Não era
raro ouvir-se, nas belas noites da primavera, defronte das ventanas
dos palácios acastelados, onde palpitavam corações femininos, os
sons maviosos do alaúde ou da tiorba, acompanhando os belos versos
dos mais ricos namorados.
Não via o velho pai da gentil moura
com bons olhos os excessos do pretendente à mão de sua filha, e
quando à noite ouvia os cantares do mancebo em frente da ventana do
quarto da filha, arrepelava-se e enchia- se de desespero. O mesmo não
sucedia à moura gentil, que não hesitava erguer-se da cama, a
desoras, abrir mansamente a janela do seu quarto, colocar-se ali
horas esquecidas enquanto seu amado ali permanecia.
Muitas
vezes o velho mouro tentou arrancar do coração da filha o amor que
ali imperava, mas debalde: a jovem limitava-se a chorar, quando mais
furibundas eram as repreensões paternas.
Vendo ele que por força
nada conseguia, encetou outro caminho, fingindo-se condoído. Ordenou
que o mancebo fosse chamado à sua presença.
-O que me queres?
perguntou o mancebo em presença do velho.
-Sei que amas minha
filha...
-Por ela dou a minha vida...
- Livre-me Allah de
contrariar as inclinações de duas almas, mas eu fiz um
voto...
-Que voto?
- Os meus campos são faltados de água...
só concederei a mão de minha filha a quem, em uma só noite,
transportar para junto do meu castelo a famosa nascente da Fonte do
Canal, a levante...
-Fica muito longe?
- A treze léguas.
O
mancebo curvou-se em frente do velho e saiu da sua presença sem dar
reposta.
O velho raposo, logo que o mancebo saiu da sua presença,
esfregou as mãos e disse consigo:
-Deste estou eu livre.
E
na noite desse dia deitou-se descansado na certeza de que não seria
despertado do seu sono.
Seria meia noite, acordou o velho a um
movimento brusco e repenti-no do seu castelo. Sentou-se na cama e
pôs-se a escutar. Momentos depois chegaram aos seus ouvidos as notas
diferidas nas cordas de um alaúde e logo os seguintes versos:
Viva
Allah; foi meu padre um bom mouro
Moura madre me deu de mamar
Moura fada fadou-me um tesouro
Moura virgem me tem de o entregar
Quando
o velho ouviu estes versos e conheceu pelo timbre da voz que o
impertinente mancebo não desistia de fazer versos a sua filha,
ergueu-se da cama num salto e correu à janela do seu quarto. Em
frente da janela do quarto de sua filha presenciou um verdadeiro
abismo, de onde jorrava a água numa imponente catadupa, bastante
para regar toda a propriedade. Ao lado do abismo e na beira viu o
mancebo com o seu alaúde Era o namorado de sua filha com os olhos
presos na janela do seu quarto.
Fulo de raiva, mas não ousando
violar a palavra dada, correu ao quarto da filha e dirigiu-se para a
ventana, onde lá a encontrou. Então pegou nela em peso e atirou-a
pela janela sobre o rapaz, que não podendo conservar o equilibrio
caiu com o precioso fardo no fundo do abismo.
Não
morreram, afirma ainda hoje o povo em seus versos de uma famosa
antiguidade, porque muitas pessoas os têm visto sair do abismo à
meia noite. Saem sempre com os braços mutuamente cruzados e passeiam
pela Quinta, cantando ao som do seu instrumento favorito. Estão ali
encantados não porque o velho mouro os encantasse, mas por especial
ordem do próprio Allah, que não consentiu que duas almas repletas
de amor desaparecessem da face da Terra, onde o egoísmo criou um
trono.
-Eo velho mouro?
-Esse está também encantado,
responde o povo, mas no próprio castelo. Só sai dali em noites de
tormenta, cantando orgulhoso e soberbo:
Eu
sou o rei D. Dinis
Serpa,
Moura, Mervim fiz
Não fiz mais porque não quis.
Quem
dinheiro tiver
Fará o que quiser.
E o
povo continua a amar os dois namorados, odiando de morte o temeroso
velho.
Ataíde Oliveira
1898
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Escultura representativa da Lenda de Marim, da autoria de Isa Fernandes. |
1 comentário:
No Largo da Fábrica Velha pode-se apreciar a escultura que representa a moura a cair, da autoria da escultora olhanense Isa Fernandes.
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