Importante é preservar a memória dos lugares. OLHÃO é a minha Cidade.

sexta-feira, 4 de abril de 2025

Olhão visto por...


 Aquilino Ribeiro

 OLHÃO VILA CUBISTA 

 

 

A primeira impressão - tanto a brancura se dilui na brancura - é a de que uma manta alvíssima recobre as casas, fraldejando ao de leve, tremeluzindo aqui e além, fundindo seus refegos e linhas, como um campo de neve sobre que desponta um cru e bravo dia. Mas o sol  doira brandamente a cal, explude nos tijolos e clarabóias, tinge de azul a sombra das empenas, afila aqui as restas, esfuma além dos ângulos, aviva lineamente quase abstractos, esculpe, traça ao acaso e de propósito, e tudo aquilo é lápide imensa de alabastro, povoada duma desconforme e  surpreendente escritura rúnica.

Vila cubista chamaram a Olhão, e, de facto, a  vol d'oiseau, parece a casaria projectar-se duma tela de Picasso para ludibrio dos olhos afeitos à ordem objectiva das três dimensões. Dum prédio para o outro as açoteias e fachadas imbrincam-se, acavalam-se, sobrepôem-se, desarticulam-se, anuladas pela brancura e pela miragem as leis da perspectiva e do volume. São milhares de cubos em equilíbrio instável, paradoxal, absurdo, como cantarias duma Babel juncando um campo raso. E todavia, deste mar revolto de planos e desta fanfarra endiabrada de branco, filtra-se uma sensação de pureza, de banho auroral, como rescende o perfume dum canteiro de açucenas. E dá vontade de ali ficar à vista da ria, dum azul ideal de iluminura, entre o céu duma diafaneidade vaporosa, onde mal se aguentam nuvens brancas, e aquele tablado branco, escapo à imaginação mais desmedida.

É com o sol — e o sol é um xerife sempre presente desta terra que, sem a Nossa Senhora do Rosário, padroeira, íamos dizer sarracena — que é preciso ver Olhão do alto da sua torre. Do moinho do Levante ao «Mundo Novo», onde a telharia fresca de Marselha põe uma barra sanguínea, rola e flameja a alterosa procela do branco. Um zimbório vermelho, que emerge e sobe no ar como balão de arraial, a cúpula da Soledade, incerta se cobre igreja se mesquita, o vão negro das frestas e até o rasgão oblongo das ruas liquefazem-se no dilúvio de alvaiade.

O próprio areal da ria aparece marchetado de branco, das mil placas deixadas pela água da baixa-mar. E por cima da selva de mastros, que povoam a pequena angra azul, à espalda das esfumadas ilhas da Armona e da Culatra, longa esta e à flor das águas como um enorme cetáceo adormecido, lá onde céu e mar se confundem, tudo é uma poalha lactea, irisada dum leve, levíssimo matiz de oiro. 

 

Guia de Portugal

in Sporting Olhanense, 1969 

 

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