Importante é preservar a memória dos lugares. OLHÃO é a minha Cidade.

sexta-feira, 4 de abril de 2025

Olhão visto por...

 

Artur Pastor

 Antologia Olhanense

Olhão, mancha branca sob céu azul luminoso, é Vila progressiva e trabalhadora, que mantém fisionomia inconfundível, sendo das mais curiosas e surpreendentes localidades portuguesas. Nela domina a singular feição do seu casario, na simplicidade quente e comunicativa das suas 'formas, modeladas pelo povo.

Na verdade, dir-se-ia não estarmos em Portugal, ou então, que a Vila arribou à costa, por mágica determinação. O nosso espírito, empolgado, alvoroça-se na contemplação dum burgo levantino, em cuja arquitectura se patenteia poderoso reflexo da civilização árabe. Olhão encerra um mundo de evocações mouras, vivo e penetrante.

A mais remota referência a esta Vila parece -se em carta datada de 1378, em que D. Fernando deu de foro uma courela de vinha e figueiral, que havia num local designado «olham», próximo de Faro. Nenhuma relação com «olho d'água», onde se procurou encontrar a origem do termo.

Presume-se que, finda a conquista do Algarve, mouros proprietários e mouros pescadores teriam ficado, misturando-se com a população cristã, envolvendo-se com esta nos mistéres da pesca. Assim permaneceria, nos vindouros, a influência moura. Mais tarde, na busca da água potável do Jogar, ao sítio confluíram famílias de numerosos pescadores, cujos lares foram rudimentares cabanas.

Era, esta, uma população sem esperanças, parada, ávida de nova existência. E, a chamá-la, à sua frente, estava constantemente o mar...

As gentes afoitaram-se nas águas, fizeram-se pescadores. Da pesca passaram ao comércio costeiro. Foram mais além. Vieram as rotas de Gibraltar, de Marrocos. Homens aventureiros levaram mercadorias ao Norte de África, e daí trouxeram, sugestionados, presos à tradição, o desejo de repetirem o que seus olhos viram. Tudo era diferente doque conheciam em Portugal.

Olhão progrediu, enriqueceu-se, mas este sentido do novo, do angustioso, do desesperado, manteve-se sempre. No casario permaneceu a luta trágica, e na altura dos mirantes o permanente anseio de ir mais além ... 

 

Artur Pastor

in  revista «Portugal ilustrado» de Novembro de 1953

 

Olhão visto por...


 Aquilino Ribeiro

 OLHÃO VILA CUBISTA 

 

 

A primeira impressão - tanto a brancura se dilui na brancura - é a de que uma manta alvíssima recobre as casas, fraldejando ao de leve, tremeluzindo aqui e além, fundindo seus refegos e linhas, como um campo de neve sobre que desponta um cru e bravo dia. Mas o sol  doira brandamente a cal, explude nos tijolos e clarabóias, tinge de azul a sombra das empenas, afila aqui as restas, esfuma além dos ângulos, aviva lineamente quase abstractos, esculpe, traça ao acaso e de propósito, e tudo aquilo é lápide imensa de alabastro, povoada duma desconforme e  surpreendente escritura rúnica.

Vila cubista chamaram a Olhão, e, de facto, a  vol d'oiseau, parece a casaria projectar-se duma tela de Picasso para ludibrio dos olhos afeitos à ordem objectiva das três dimensões. Dum prédio para o outro as açoteias e fachadas imbrincam-se, acavalam-se, sobrepôem-se, desarticulam-se, anuladas pela brancura e pela miragem as leis da perspectiva e do volume. São milhares de cubos em equilíbrio instável, paradoxal, absurdo, como cantarias duma Babel juncando um campo raso. E todavia, deste mar revolto de planos e desta fanfarra endiabrada de branco, filtra-se uma sensação de pureza, de banho auroral, como rescende o perfume dum canteiro de açucenas. E dá vontade de ali ficar à vista da ria, dum azul ideal de iluminura, entre o céu duma diafaneidade vaporosa, onde mal se aguentam nuvens brancas, e aquele tablado branco, escapo à imaginação mais desmedida.

É com o sol — e o sol é um xerife sempre presente desta terra que, sem a Nossa Senhora do Rosário, padroeira, íamos dizer sarracena — que é preciso ver Olhão do alto da sua torre. Do moinho do Levante ao «Mundo Novo», onde a telharia fresca de Marselha põe uma barra sanguínea, rola e flameja a alterosa procela do branco. Um zimbório vermelho, que emerge e sobe no ar como balão de arraial, a cúpula da Soledade, incerta se cobre igreja se mesquita, o vão negro das frestas e até o rasgão oblongo das ruas liquefazem-se no dilúvio de alvaiade.

O próprio areal da ria aparece marchetado de branco, das mil placas deixadas pela água da baixa-mar. E por cima da selva de mastros, que povoam a pequena angra azul, à espalda das esfumadas ilhas da Armona e da Culatra, longa esta e à flor das águas como um enorme cetáceo adormecido, lá onde céu e mar se confundem, tudo é uma poalha lactea, irisada dum leve, levíssimo matiz de oiro. 

 

Guia de Portugal

in Sporting Olhanense, 1969 

 

Olhão visto por...

 

Mário Lyster Franco

 

Para ver Olhão e disfrutar a maneira de ser, característica da curiosa vila algarvia, não basta visitá-la como se visitam muitas outras terras, percorrendo as suas ruas e avenidas principais, de pretensões muito legitimamente modernas, entrando numa ou noutra igreja e admirando uma ou outra coisa de interesse local. Em Olhão, não basta ainda percorrer as ruas do curiosíssimo bairro da «Barreta», autentico labirinto de vielas tortuosas e por vezes estreitíssimas, com as suas casas sempre caiadas, as paredes por vezes revestidas de ladrilhos postos ao alto e caiados também — no Algarve caia-se tudo ! — e os recantos angulosos, por onde um biôco se escoa, num rasto de mistério impenetrável. Isto que já é curioso, que seria por si só recomendável, não é tudo, não chega

mesmo a ser o principal. Para se ver Olhão, é preciso subir. Torna-se mister bater a uma ou a outra porta, que se abre sempre com facilidade, trepar por uma escadinha estreita e empinada, mas de fácil utilização, e ir até ao mais alto que se possa.

Torna-se indispensável subir a uma açoteia, tarefa aliás facílima, para ver as outras açoteias e os mirantes, de linhas angulosas e esbeltas, sobressaindo aos milhares aqui e acolá, estes mais alto que aquele, todos brancos e irregularmente dispostos, autênticos cubos de cartão ou dados de jogar dispersos sobre as casas, e com peitoris e escadas exteriores de tijolo e ladrilho, também caiadas e lançadas por sobre arcos aviajados de primorosa linha, e tudo de tal forma irregular e desencontrado, que surpreende, que encanta, que fere a vista pela sua brancura que se não descreve, que quási estonteia e inebria. 

 

in Almanaque do Algarve

1947 

 

Deliberações Camarárias - Século XIX

MÊS DE SETEMBRO